A ausência de vínculos entre pais e filhos pode ocasionar intenso sofrimento psíquico e configurar abandono afetivo, situação apta a justificar pedido de desfiliação biológica. Assim, é possível a retificação do nome para suprimir o patronímico, uma vez que a hipótese ultrapassa a esfera do direito registral, tratando, em verdade, do direito fundamental à dignidade da pessoa humana. Uma mulher ingressou com ação de desfiliação parental em desfavor do pai biológico por inadimplemento do dever de parentalidade. Alegou abandono afetivo e material, bem como ausência de convívio entre eles. Relatou ter sido criada pela mãe e pelo padrinho, posteriormente registrado como pai socioafetivo na certidão de nascimento. O juízo sentenciante julgou o pedido improcedente.
A autora interpôs apelação. Na análise do recurso, os desembargadores esclareceram que os arts. 226 e 229 da Constituição Federal atribuem aos pais o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, para uma vida digna. Ressaltaram que a ausência de afeto prejudica a formação do indivíduo como pessoa, pois gera sentimento de abandono, com reflexos permanentes na vida do descendente. O colegiado destacou que o abandono afetivo representa falta de amparo e cuidado com os filhos, bem como negligência emocional e intelectual, favorecendo sentimento de insegurança e de hostilidade entre os membros do núcleo familiar. Esclareceu que tal situação pode ocasionar sofrimento pelo uso do sobrenome do ascendente e, apesar da imutabilidade conferida ao nome, com exceções específicas da Lei de Registros Públicos (art. 57), a jurisprudência tem flexibilizado esse entendimento desde que haja justo motivo e não cause prejuízo a terceiros.
No caso concreto, os julgadores explicaram que a autora relatou a inexistência de vínculo paterno-filial desde a infância e o imenso desconforto e sofrimento psíquico pelo uso do patronímico do genitor, dada a absoluta falta de identificação com ele e ausência de sentimento familiar. Acrescentaram que, além de o recorrido ter manifestado concordância com o pedido autoral, a recorrente incluiu em seu próprio registro de nascimento, o sobrenome do pai socioafetivo – com quem possui identidade emocional. Esclareceram ainda que a pluriparentalidade, até então existente, não pode ocorrer em detrimento da descendente; ao contrário, deve destinar-se a dar maior plasticidade às novas conformações da família, sem violar o direito fundamental à dignidade da pessoa humana.
Assim, os magistrados concluíram que o direito ao nome não envolve apenas a questão registral, mas essencialmente o direito fundamental à identidade e, nesse cenário, por entender que o abandono afetivo configura justo motivo, deram provimento ao recurso para autorizar a desfiliação requerida e para admitir a supressão do sobrenome paterno.
(Acórdão 1856074, 07361138620238070016, Relatora: Des.ª CARMEN BITTENCOURT, Oitiva Turma Cível, data de julgamento: 9/5/2024, publicado no DJe: 14/5/2024)